A mancha na capa

Alexrosssupdesk

Já disse antes. Nunca fui fã de Superman. Sempre me senti mais atraída pela escuridão e angústia do Batman. Questão de identificação, suponho. Começo a desconfiar, porém, que talvez eu devesse ter prestado mais atenção ao homem de aço (minúsculas são propositais).

Esqueçamo-nos de dois fatos básicos: ele é alienígena e tem superpoderes. Deixemos de lado também o contexto histórico de sua criação (Nietszche, Hitler, etc.). Vamos tentar encarar o aspecto humano deste ser super-humano.

 

Garoto adotado por fazendeiros de Kansas, ele descobre sua verdadeira origem. Trauma 1: foi enganado. Sua verdadeira família morreu todinha, Krypton foi dizimado e ele foi enviado para um planetinha furreca de Sol amarelo. Trauma 2: porra, Jor-El! Abandonado, exilado, praticamente expulso da casa de seu pai (Krypton), sozinho, cercado de seres inferiores. Planetinha chinfrim, né não? Mas o Súper nunca reclamou disso.

 

Ele é obrigado a esconder sua identidade porque os humanos não vão entendê-lo. Vão tentar explorá-lo, usá-lo para seus próprios fins egoístas. Trauma 3: rejeição e isolamento. Obs.: todo aquele perrengue com o General Zod e sua trupe não ajudaram em nada. Alguém pensou em filhos pagando por pecados dos pais? Porra, Jor-El²!

 

Expulso de Krypton, Súper decide ir em frente e adotar seu novo lar e seus habitantes. Os problemas mal-resolvidos com Jor-El e Johnathan Kent (morreu cedo) resultam em culpa e proteção exagerada dos terráqueos. Súper se arvora de defensor do planeta. Ele sabe que é o melhor pra o trabalho, e não deixa de ser uma maneira de agradecer ao planeta que o acolheu. Seu único limite é a kryptonita. Porra, Lex Luthor!

 

Para melhor fazer seu “trabalho”, Súper descola uma vaga no “Planeta Diário”. Já falei sobre isso em post anterior, mas segue aí o resumão. Teoricamente, este pretensioso rotativo tinha a pretensão de cobrir o mundo todo. Bacana, né? Súper se vestia de Clark Kent, meio nerd meio derp, ficava sabendo das melhores pautas (aka piores roubadas), vestia a roupitcha vermelha fashion e ia lá salvar o dia, sem mencionar salvar a tonta da Lois Lane. E ainda entrega a pauta! Superman não é súper à toa, mermão.

 

Em todo o processo, tanto Clark quanto Súper são dois genuínos gentlemen. Velhinhas podem andar nas ruas tranquilas, crianças traquinas são salvas, vítimas de assalto, de terremoto e de furacão – ele salva todos com cortesia, gentileza e um sorriso nos lábios.

 

Tem gente que também é assim – de uma forma ou outra. Não voam, não mudam o sentido de rotação da Terra para reverter o tempo e salvar a mocinha, não param nenhum trem desgovernado. Mas pagam suas contas em dia, não falam mal dos outros que o prejudicaram, às vezes até se prejudicam para ajudar os outros. São corretos, polidos. Procuram não desanimar, não se enraivecer. Como o Súper, são admirados, respeitados, até invejados. Pilares da sociedade (embora nem sempre guardiões da moral), seus defeitos existem, mas soçobram no mar de suas virtudes.

 

Superman-clarkkent

Isso sempre me irritou. Súper era o cara bonzinho, o cara que todo mundo queria adotar/casar/corromper/seduzir. Odeio gente boazinha. Sou dessas pessoas que olham esses samaritanos e se sentem julgadas. Não tenho raiva das pessoas, mas da mentalidade de rebanho. A engenharia tem um axioma: toda norma prevê um desvio. Parem com essa hipocrisia!

 

Só que eu me dei conta das entrelinhas. Súper também tem seus momentos de dúvida. Não se exploram muito esses. Mas existem.

 

Seu Getsêmani se chama Fortaleza da Solidão. Não um deserto, mas um campo de gelo. O povo jura que ele vai “recarregar as baterias”. Para mim, Getsêmani é Getsêmani: ele vai combater seus monstros internos, seus demônios, sua sombra. E não são poucos.

 

Por que Jor-El me abandonou? O quanto eu tenho de Lex Luthor? Devo dizer a verdade a Lois? Ela vai me rejeitar (também)? Os humanos vão me aceitar? Será que minha vida com minha família em Krypton seria diferente da que tive com os Kent? Por que tenho que me esconder desses humanos, quando sou melhor, mais forte e mais poderoso e podia esmagá-los com um golpe? Seria eu um príncipe em Krypton, se tivesse ficado com minha verdadeira família? Como último da minha raça, não devo a meus conterrâneos (ou seriam conkryptonianos?) o dever de lembrar sua herança? Posso ter descendentes se tentar produzir progenia com uma humana? Alguém poderia querer me amar por ser Clark, não Súper? E o medo da kryptonita?

 

Tem dias que eu me sinto assim também: cheia de dúvidas. Mas eu não sou supernada, então minhas dúvidas são pequenas. Mesquinhas, até.

 

Bons samaritanos tampouco são imunes a esses momentos. Eles se perguntam se ter raiva é ser uma má pessoa, se vale a pena o esforço, se um dia ele vai ter refresco, por que coisas boas acontecem a pessoas más e vice versa, por que o que ele mais quer é tão difícil, se ele poderia se corromper por outros (mulher, marido, filhos, parentes), por que é pecado se é tão bom, por que ele não pode devolver na mesma moeda, e por aí vai.

 

Na vida real, perdem-se muitos bons samaritanos. Começa com desculpas como “Só vou ficar na vaga de deficientes um minutinho”, “vou só experimentar/é só uma vezinha”, “não tá prejudicando ninguém”, “Fulano precisa tanto, foi para ajudar um necessitado”, “ninguém vai saber”, “não é crime”. E lá se foi o samaritano.

 

O Súper resolve essas dúvidas com um sorriso de Lois, com a certeza do dever cumprido, com a satisfação do dever cumprido. Bom, penso cá comigo, ele é o Súper. É um alienígena, pô. Gente comum não funciona assim. Não é?

 

Então percebi que tem gente assim que não é alienígena. Vamos chamá-los de supersamaritanos, só para não confundir. No fundo, eles têm suas dúvidas. Tremem na base, porque não vieram de Krypton. Mas prosseguem no caminho da Samaria. Às vezes saem de Getsêmani ainda mais fortalecidos do que quando entram.

 

Sim, esses supersamaritanos são raros. Cada vez mais raros. Nossa sociedade se aprofunda em individualismo do tipo egoísta e preconceituoso. Pessoas como essas são como luzes na escuridão, estrelas contra o céu escuro. Em rareando, a escuridão se intensifica, estrelas se apagam.

 

Uma das minhas maiores dúvidas no meu Getsêmani é de que eles entrem em extinção. E que o mundo nunca mais veja gente assim.

 

Vão ter que vir de Krypton.

 

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Para quem ficou em dúvida: Getsêmani refere-se ao jardim onde Jesus ficou, ao pé do Monte das Oliveiras, antes da Crucificação. É usado como símbolo de uma angústia pessoal, existencial. 

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