Super-homens e Clark Kents

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Há um número de profissões cercadas de mitos. Outras incorporam mitos alheios para si. Talvez isso tenha acontecido com jornalistas.
A relação dos jornalistas com o Super-homem, ou Superman, não é nova e até deu origem ao chamado “Complexo de Clark Kent”, título de um livro de Geraldinho Vieira (1991). Segundo essa condição quase coletiva, o jornalista abriga a ilusão de que dispõe de superpoderes e que pode salvar o mundo. É quase uma síndrome. Como uma folie à deux (loucura a dois, que os psiquiatras chamam de Transtorno Psicótico Compartilhado), mas talvez seja folie à beacoup (muitos).

Confira o resto da ladainha. Alerta: é grande e tem até referência bibliográfica” :O

Embora o Super-homem não seja um personagem novo, cumpre esclarecer que o herói adotou a profissão de repórter do “Planeta Diário” com o objetivo de saber com rapidez quando e onde pessoas precisavam de ajuda. Detalhe: não sou especialista no Homem de Aço, mas tenho quase certeza de que Clark não era repórter, e sim fact-checker. Repórter mesmo era Lois Lane. Ele tinha que ficar na redação e conferir os fatos que a reportagem trazia. O “New York Times” e outros grandes jornais americanos preservam essa função até hoje.

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Mas continuemos com o modus operandi de Clark. Visualize um dia típico na redação do PD. O caipira vindo de Smallville (Kansas) estava na redação, num trabalho tedioso e pouco desafiador, basicamente mantendo-se invisível. Então ele ouvia uma pauta (ele nunca pegava a pauta: 1) Lois não deixava, 2) seu trabalho era outro), dava uma desculpa para sair, ia para a cabine telefônica mais próxima, trocava de roupa, literalmente saía voando até a pauta, salvava as vítimas (e geralmente também tinha que salvar Lois), voltava e fazia seu trabalho de fact-checker.

Jornalistas não são exatamente assim, embora muitos jurem que a realidade não passa longe disso. Talvez seja melhor tirarmos isso a limpo e comparar repórteres e Superman.

 As qualidades, superpoderes e atributos do Superman (entre outros):

Visão de raio X, superforça, supervelocidade, voo, bom-mocismo, defesa da instituições, defesa dos fracos e oprimidos, identidade secreta, capacidade de enfrentar ameaças destrutivas (de supervilões e monstros alienígenas a desastres naturais). Aura romântica, proteção, segurança e até sex-appeal. Pessoalmente, sou mais o Morcegão do Batman, mas não critico quem curte o cara de cueca pra fora da calça e chuquinha no cabelo 🙂

As qualidades, superpoderes e atributos do jornalista (entre outros):

Liberdade de imprensa, interesse público, defesa das instituições, proteção aos mais fracos, abrangência e transparência… Sem mencionar confiança do público, capacidade de transformar realidades, poder de confrontar poderosos… Defesa da verdade, coragem, agilidade, idealismo, sex-appeal (de novo)…

O livro “Complexo de Clark Kent”, escrito nos idos de 1990, alertava (entre outras coisas) que os jornalistas podiam se ver presos na armadilha de Clark Kent e tentar salvar o mundo. Isso poderia ser verdade num Brasil recém-saído de um regime de exceção, mas depois de 20 anos, a situação mudou.

Mencionar condições de trabalho não é meu objetivo. Essas condições, porém, contextualizam o jornalista numa sociedade sobre a qual ele noticia. Os Clark Kents dos anos 90 ainda se sentiam heróis da notícia, lutando contra governos-vilões que oprimiam povos indefesos. A introdução do livro era mais explícita:

“O poder da palavra, da imagem, da seleção e interpretação dos fatos, e de sua multiplicação cria a a lusão do repórter super-homem como, a comerçar pela tradicional história em quadrinhos, foi tantas vezes usado pela ficção – do cinema às novelas de tevê, passando pela literatura e teatro. A fição coloriu uma profissão onde o dia a dia é uma maravilhosa aventura no combate aos males sociais e na procura da verdade, onde as portas parecem abertas a toda sorte de liberdade, da manipulação da realidade ao acesso e divulgação da informação. A ficção não mostrou (…) que se a imparcialidade exige uma boa dose de ceticismo, é impossível fazer jornalismo sem uma apaixonada vocação pelo contato íntimo com realidades nem sempre prazerosas e sem um desejo de alto custo por estar sempre mais próximo da verdade. Não mostrou que por mais honéstico e ético que seja o profissional de mídia, ele é tão humano quanto o leitor que também lê com olhos diferentes aquilo que lhe agrada e aquilo que o fere.”(1)

Não tenho muita certeza de que seja só com jornalistas, mas falemos deles. Noto nas redações pouca vontade de fazer uma matéria importante para quem precisa. Pouca contestação também. Não se contesta o chefe, não se contesta a pauta, não se contesta a fonte. Não por outra razão que não seja causa própria. Às vezes vejo denuncismo, às vezes vejo alarmismo, não canso de ver cinismo e sobra estrelismo. Cadê o jornalismo?

Falo principalmente do profissional do jornalismo, do repórter. Costumava-se chegar à redação (depois de uma faculdade ou não) com brilho no olho, com vontade de se abrir para as fontes e de ouvi-las. Havia mais empatia, mais entusiasmo. Pecava-se por idealismo, por fé excessiva, jamais por cinismo.

Não sei direito quando isso sumiu, mas eu vi repórter que não era nem queria ser notícia. Vi repórter se envolver na notícia, incorporar a matéria, conseguir empatia com o entrevistado. Vi entrevistas com gente que tinha o que dizer a gente que sabia ouvir. Hoje vejo muito pouco isso.

As relações de trabalho mudaram, e também os profissionais. Uma jornada de cinco horas era suficiente para cumprir uma pauta, mas o repórter não se contentava em entregar sua matéria e ir embora. Queria interferir na página, na capa, na foto. Brigava pela qualidade, ficava até o fechamento, e depois do fechamento saía com o povo da redação e da oficina para beber e começar tudo de novo no dia seguinte. Todo mundo saía do bar com duas ou três pautas para sugerir ao pauteiro do jornal.

Saudosismo é uma coisa; pedir que os repórteres saiam para as ruas e falem com pessoas de verdade é outra. Pedir que jornalistas escutem fontes, que discutem civilizadamente, respeitando pontos de vista, é outra. Talvez a sociedade precise voltar a ter pontos de vista e não simplemente um link para retuitar, reblogar ou curtir.

Jornalista não é nem nunca foi Super-homem. Mas existe uma grande chance de que precise voltar a aprender a ser Clark Kent.


Referência bibliográfica

(1) VIEIRA FILHO, Geraldo. Complexo de Clark Kent: são super-homens os jornalistas?.
São Paulo: Summus, 1991. (Novas Buscas em Comunicação, v. 41)

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